Escritório da capitã

Como eles e nós lidamos com nossos defeitos

Então que fui na casa dos meus pais na páscoa e aproveitei para rever uns velhos vídeos de família que a gente tem da época que filmadora era uma coisa tão cara que a gente pegava emprestado da amiga da minha mãe. Era um bagulho enorme, de apoiar no ombro, e gravava naquelas fitas grandes de vídeo-cassete. Nosso respeito pela fita só não era maior do que pelos filmes fotográficos porque pelo menos na fita você podia regravar, mas registrar imagens se mexendo era tão importante quanto registrar imagens estáticas.

Então, não sei porque cargas d’água, minha mãe resolveu fazer um registro do meu tratamento para remoção da mancha de vinho do porto. Acho que ela pensou que o tratamento seria um sucesso e que hoje eu não teria mais mancha, então o registro serviria para me lembrar do que eu passei para valorizar o resultado.

Eu era uma gracinha desde mini-marta, e todos meus amigos podem confirmar que eu ainda falo como uma criança de nove anos. Ano que vem esse vídeo faz 20 anos e quase nada mudou. Eu engordei, a mancha está aqui (não fiz o tratamento até o fim) e o tratamento segue semelhante: queimadura que dura uma semana etc e tal.

timelineAnyways, como sempre acontece quando falo disso, acabei conhecendo mais pessoas com a mancha de vinho do porto. O Rafa é administrador da página sobre hemangioma do Facebook e veio bater papo comigo. Eu adoro quando isso acontece.

Ele me perguntou porque eu não participo mais de fóruns (o primeiro grupo sobre hemangioma no orkut fui eu que criei) e expliquei que é cansativo falar disso o tempo todo. Veja, a mancha é uma característica minha como meu cabelo loiro, meu riso fácil e minhas pernas diferentes. Nesses grupos de discussão, como a mancha é o foco da conversa, a gente fala muito disso o tempo todo e me sinto resumida a UMA das minhas características. Além disso, sou bem sintonizada com o movimento feminista e muitas vezes o que mulheres passam me deixa muito triste.

O Rafa e um outro rapaz que comentou aqui no blog têm uma relação bem saudável com a mancha. Eu chamo de saudável o famoso “tenho, grandes coisa, vida segue”. Note que não estou culpando quem ainda não se sente assim sobre isso ou qualquer outra característica fisica sua. Porque a cobrança é bem grande.

Os meninos podem falar, pois tenho certeza que já tiveram suas inseguranças. O que eu posso falar é sobre as inseguranças das meninas. Eu notei que eu tinha um medo tão grande de não arranjar namorado que minhas primeiras paixonites foram 100% inventadas. Eu precisava provar que eu ia conseguir namorar.

Eu tive muito medo que ninguém fosse me dar um emprego. Inclusive, uma moça veio falar comigo uma vez porque ela estava fazendo o tratamento e, já que estava bem queimado, ELA NÃO CONSEGUIA TRABALHAR. Todos os dias essa mulher se maqueava até esconder seu sinal de nascença porque ela é recepcionista e não pode se dar ao luxo de ter uma característica que saia do padrão. Agora olha esse moço aí na imagem ao lado, do tratamento. A galera da firma no máximo ia zoar ele um pouco e a vida ia seguir. Nada de desemprego para este rapaz.

Mães conversam desesperadas comigo sobre o desenvolvimento socio-comportamental de seus filhos e eu passo o que funcionou pra mim sem qualquer adaptação de contexto. Quem é pobre, como lida com isso? Porque se 20 anos atrás o tratamento era dois mil reais por mês (graças à anestesia geral), imagina hoje? E não só isso. Se eu fizesse o tratamento de novo, tenho certeza que seria tratada bem diferente dos meus colegas homens. E olha que passei os últimos dez anos tentando ser como um.

Enfim, só para refletir que a forma como a gente lida com as nossas coisas (ou não) é tão diferente das outras pessoas. E que a cobrança estética da mulher é tão, tão maior que a do homem. Não estou dizendo que os meninos não sofram nada. Mas eu conheci um rapaz que era desses guias de museu com uma mancha no rosto uma vez. Acho que ninguém ameaçou o emprego dele.

Se eu fosse um menino… eu teria me “apaixonado” aos dez anos, como aconteceu, ou só aos 14, quando realmente gostei de alguém? Eu teria chorado tardes e tardes porque uma médica me disse “já que o problema é estético, não mexe”, mesmo que hoje eu concorde com ela? E o tanto que eu chorei quando disseram que a Síndrome de Kipple Trenaunay poderia me dar trombose ao engravidar, e que se eu quisesse ter filhos eu teria de adotar? Quantos homens gastariam lágrimas por não poder ter um filho biológicos, versus quantas gurias?

No fim, até meu rosto é uma expressão de luta pelo direito à dignidade, à igualdade. Mesmo sendo a coisa mais comum do mundo pra mim, para muita gente não é. E a forma que “a sociedade” lida com isso diz muito sobre quem ela é. Ela é machista. O que podemos fazer para que ela vá sendo menos e menos machista, até deixar de ser?

Um comentário em “Como eles e nós lidamos com nossos defeitos”

  1. Marta estava sentindo falta de seus textos verdadeiros. Sim, concordo com vc que este peso recai muito mais sobre a estética feminina. E uma das coisas que podemos fazer para que seja cada vez menos machista? Continuar firme e forte nos empoderando e empoderando mais 10 mulheres ao nosso redor. Beijos.

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